16 de maio de 2022

A8 diariodolitoral.com.br Segunda-feira, 16 DE maio DE 2022 AA Narrativas de fantasia épi- ca têm sido cada vez mais instrumentalizadas por ex- tremistas de direita e supre- macistas brancos nas últimas décadas. Aconteceu com “O Senhor dosAnéis” e está acon- tecendo com “O Homem do Norte”, filme do americano Robert Eggers lançado agora que tenta recriar a atmosfera do mundo dos vikings, retra- tando a Islândia de mais de mil anos atrás. Não é difícil entender por que a direita raivosa e racista gosta de se apropriar desse tipo de história. Para come- çar, as tramas e personagens se inspiram com frequência nas mitologias do norte da Europa –emgeral as da Escan- dinávia, mas por vezes tam- bémas de povos celtas, como galeses e irlandeses–, retra- tando culturas supostamen- te puras e isentas de qualquer influência considerada “não branca”. Seus personagens mascu- linos representariamumideal descomplicado de coragem marcial e resistência indômi- ta ao inimigo, semdúvida um prato cheioparaquemquer se matricular numclube de tiro. E as mulheres dessas narra- tivas costumam exibir uma beleza padronizada e longos cabelos louros que reforçam o estereótipo de pureza eu- ropeia. Ao menos alguns dos lu- náticos que invadiramo Con- gresso americano logo de- pois da eleição de Joe Biden, em janeiro do ano passado, se veem representados nes- ses elementos, assim como os “tupinivikings” brasilei- ros que aderiram ao bolsona- rismo –durante a campanha eleitoral de 2018, por exemplo, surgiram memes comparan- do Jair Bolsonaro a Faramir, personagem heroico e abne- gado de “OSenhor dos Anéis”. Para que tais histórias fun- cionem como simples rotei- ro ideológico desses grupos, porém, é necessário ignorar a Lembrando ‘Hamlet’, um príncipe vê o pai ser morto pelo tio, foge e retorna anos depois, já musculoso e cheio de sede de vingança DIVULGAÇÃO ‘O Homem do Norte’ pode abafar a ‘fixação’ da direita por vikings CINEMA. Filme do americano Robert Eggers retratando a Islândia tenta recriar a atmosfera do mundo de mais de mil anos atrás complexidade e a ambiguida- de que estão presentes nelas. É nesse ponto que “O Ho- memdoNorte” pode, ironica- mente, funcionar como uma ferramenta para desmontar os contos de fadas suprema- cistas, porque o filme deixa claro que não havia nada de “europeu” nos guerreiros lou- ros e cabeludos da era dos vi- Eggers contou com a ajuda de alguns dos principais arqueólogos que estudam a Escandinávia medieval kings. A afirmação talvez pareça maluquice,mas é exatamente esse o resultado da pesquisa detalhada feita pela equipe de Eggers durante a produção do longa. Odiretor contou coma ajuda de alguns dos principais arqueólogos que estudam a Escandináviamedieval, como o britânico Neil Price, da Uni- versidade de Uppsala, na Sué- cia, para reconstruir o cotidia- no e a maneira de pensar dos nórdicos do século 9º d.C. O apego quase obsessivo a essas referências trouxe às telas de cinema uma cultu- ra que lembra muito mais, digamos, os tupinambás que dominavama costa brasileira em 1500 do que qualquer so- ciedade que classificaríamos como europeia hoje. Com efeito, as estruturas tribais da Escandinávia des- sa época, com seu apego aos códigos de vingança, sua reli- gião fortemente influenciada pelo xamanismo –incluindo a crença de que certos guer- reiros podiam se identificar espiritualmente com lobos, corvos e ursos– e sua anar- quia política não poderiam estarmais distantes da supos- ta defesa da “cultura ociden- tal” feita pela extrema direita de hoje. Isso para não falar, é cla- ro, dos supostos “valores cris- tãos” dos ideólogos atuais. No filme, personagens cristãos só aparecem como escravos dos escandinavos, sendo acusa- dos de adorar cadáveres tor- turados, uma maneira plau- sível de imaginar como um viking pagão enxergaria um crucifixo. Em suma, o protagonista Amleth e os demais vikings de “O Homem do Norte” cla- ramente não pensam em si mesmos como “ocidentais”, “europeus” –e talvez nem mesmo como “brancos”. Seu horizonte cultural é muito mais estreito, pecu- liar e difícil de conceber com a cabeça do século 21. E não deixa de ser irônico também o fato de que a amada do protagonista seja uma serva de origem eslava, enquanto boa parte das teorias racistas dos séculos 19 e 20 conside- ram os povos eslavos uma “raça inferior”, atrasada e indigna de ser considerada 100% europeia. Hitler não curtiu isso. Por fim, quem se sente tentado a ver no filme uma glorificação da violência viril precisa deixar de lado o fato de que a vingança implacá- vel desencadeada por Amleth é essencialmente fratricida e autodestrutiva. É significativo que a extrema direita se reco- nheça nesse tipo de espelho. (Reinaldo José Lopes/FP) AA O protagonista de “@Ar- thur.Rambo “”Ódionas Redes”, que estreia agora, mal conse- gue segurar o sorriso nas pri- meiras cenas. Criado na peri- feria parisiense pela mãe, uma imigrante argelina, ele parece ter alcançado o auge do suces- so –temseu romance de estreia elogiado em rede nacional, é convidado para assinar uma coluna no mais prestigioso programa literário da TV fran- cesa, recebe um convite para adaptar e dirigir seu livro no cinema. Até que uma torrente de mensagens de ódio invade a tela. “Férias emAuschwitz. Ain- da restam lugares nos trens.” “Asmulheres são iguais aos ho- mens? Não!?” “Setenta e duas virgens para os terroristas: quem se candidata?” São tuítes, de autoria dele mesmo –ou melhor, de seu al- terego raivoso, a combinação de Rimbaud commetralhado- ras que dá nome ao filme. E carimbam a jornada ao fundo do poço do personagem nas 48 horas seguintes, quando a sua promessa de um futuro brilhante se torna um cancela- mento sumário. Por alegórica que soe a tra- ma, ela é baseada num episó- dio real, ocorrido cinco anos atrás com o influencer francês MehdiMeklat. Vistocomouma espécie de porta-voz das ban- lieues, as periferias parisienses hiperpopulosas, ele assumiu a autoria de uma série de tuítes racistas, misóginos, homofóbi- cos e antissemitas publicados sob um pseudônimo. “Tinha lido algumas de suas crônicas, ouvia todo dia o seu programa na rádio. Quando soube dos tuítes, não conse- guia fazer a conexão entre o cara que eu imaginava e aque- le que eu tinha conhecido nas postagens”, diz o diretor do fil- me, Laurent Cantet, acrescen- tando que, apesar de ter infor- mado Meklat sobre o projeto, o influenciador não se envol- veu nele. “Arthur Rambo” é, assim, a tentativa de Cantet –cineasta por trás de “Entre os Muros da Escola”, ganhador da Palma de Ouro emCannes em2008 – de dividir com o público as mes- mas perguntas que se fez na época do escândalo. ‘@Arthur.Rambo’ se volta para a cultura do cancelamento Cantet conta que estrutu- rou a narrativa como um dra- ma jurídico, emquea cada cena o protagonista busca justificar suas ações diante de um júri di- ferente –a editora, os amigos, a namorada, a mãe. Não há, no entanto, uma resposta única capaz de expli- car por que, afinal, aquele jo- vempromissor escreveumen- sagens tão odientas, para ele ou para o espectador. “O filme traz muitas entradas diferen- tes. Você apanha um fio e o de- senrola”, afirma o diretor. O cineasta diz que uma ex- plicação possível diz respeito à própria lógica das redes. O personagemquer ser popular a todo custo e descobre que para isso precisa ser cada vez mais provocador, mais violento. “As redes sociais simplificam nos- sa forma de pensar”, diz o dire- tor, ressaltando que o próprio formato dessas mídias, de tex- tos curtos, para serem lidos e compartilhados rapidamente, exige isso. “Elas tomam tanto espaço na nossa vida, mas não pensamos na forma como as usamos.” Uma outra resposta tem um viés mais político, acres- centa Cantet, e se relaciona com o lugar que esse jovem ocupa na França contemporâ- nea. Imigrante de segunda ge- ração, o protagonista não quer seguir o caminhoque seus pais encontraram para se integrar ao país, de obediência, passivi- dade, aceitandouma existência “varrida para debaixo do tape- te”, nas palavras do diretor. Ele tem raiva, e essa raiva “é uma condição para existir ali”, afir- ma Cantet. É o mesmo ódio, diriam al- guns, que levou a direita ra- dical a se fortalecer entre os membros da classe trabalhado- ra da França nos últimos anos, a ponto de Marine Le Pen ter tido chances reais na eleição presidencial deste ano. Mas essa visão não é com- partilhada por Cantet. “Esses jovens não são responsáveis pelo que está acontecendo. São vítimas. É claro que a extrema direita usa isso. Mas acho que temos que provar para essas pessoas que elas sãomembros danossa sociedade antes depe- dir qualquer coisa delas.” (FP) O ódio levou a direita radical a se fortalecer entre os membros da classe trabalhadora da França nos últimos anos DIVULGAÇÃO Cultura

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