18 de outubro de 2021

A8 diariodolitoral.com.br Segunda-feira, 18 DE outubro DE 2021 AA “Entendo que são duas coisas diferentes. O escri- tor tem pouco a ver com o compositor”, disse Chico Buarque numa entrevista há quase 20 anos, falando duas vezes em terceira pes- soa. “Mas é uma coisa pes- soal minha. É difícil conven- cer o leitor de jornais desse meu sentimento.” Aqui tampouco se tenta- rá fazer esse convencimen- to, até porque esse divórcio fica ainda mais complica- do quando tantos protago- nistas de Chico gritam de semelhança com ele, voz e olhos inconfundíveisdamú- sica brasileira. E em“Anos de Chumbo”, sua primeira in- cursão no terreno dos con- tos, eles semultiplicammais do que nunca. Presteatençãoem“OPas- saporte”, umdosmomentos mais inspirados da nova co- letânea, que se refere a seu personagem principal ape- nas como “o grande artista”. O áspero cotidiano do Brasil tem inspirado cada vez mais a obra de Chico Buarque, como comprova ‘Anos de Chumbo e Outros Contos’ DIVULGAÇÃO Chico Buarque acerta as contas com haters em primeiro livro de contos LITERATURA. Em ‘Anos de Chumbo e outros contos’, artista brasileiro traz lirismo em vigas mestras e harmonia em canos enferrujados gargalhada contagiante, abrindo os braços e batendo na coxa - algo bem distante do tom do conto, que segue numa comédia de erros es- catológica e meio macabra, na qual o artista decide ar- mar uma vingança contra o misterioso hater. Não temmuito como sa- ber se Chico desopilou al- guma vontade reprimida ao inventar essa desforra. O ar- tista de 77 anos passou por uma cirurgia na coluna na última terça-feira. Mas se sabe que, das oito histórias do livro, a primeira que o recém-contista escre- veu foi “Para Clarice Lispec- tor, com Candura”, protago- nizada por um jovem poeta que “sabia de cor cada vírgu- lados romances e contos” da escritora e, tímido, começa a se encontrar com ela. “Maior que odesconforto de encarar Clarice Lispector em silêncio, sentado rijo na ponta do sofá, era o seu re- ceio de sem querer baixar a vista e visualizar -ela gostava da palavra visualizar- a mão direita dela”, que tinha saído machucada de um incêndio em 1966. Não é precisomuita pes- quisa para descobrir que Chico Buarque catoumuito da poesia que Clarice entor- nou no chão. Nem é difícil encontrar causos emque ele relata, quase num assom- bro, as vezes em que este- ve com ela - algumas mui- to parecidas com o narrado no conto. “Comecei a ir à casa dela, e era estranho, porque a Cla- rice tinha uma maneira de encarar você e fazer pergun- tas diretas. Ela era descon- certante”, afirma o cantor numa entrevista disponível noYouTube. “Então às vezes acontecia de eu ir à casa dela, ela perguntar coisas, depois ela sumia, me deixava sozi- nhona sala. Eunão entendia muito aquela mulher.” Numa dessas visitas, por ocasião de uma entrevis- ta para a Manchete, Clari- ce pergunta a Chico o que é o amor. Ele não responde, mas deve ter ficado décadas com isso na cabeça, porque também no livro a escrito- ra pergunta ao moleque, de supetão, “para você o que é o amor?”. (FP) Mesmo nos momentos mais sublimes, Chico Buarque não deixa seu leitor se esquecer da sociedade que o rodeia AA O áspero cotidiano do Bra- sil tem inspirado cada vez mais a obra de Chico Buarque, como comprova o livro Anos de Chumbo e Outros Contos, que a Companhia das Letras lança no dia 22. São narrati- vas curtas, em que a agudeza da observação torna qualquer fato consideradobanal emum ato irônico e reflexivo sobre até onde pode chegar a sor- didez humana (em especial, a brasileira). Basta a leitura do texto que abre o volume, Meu Tio, que faz imediata referência à clás- sica e amorosa comédia de Ja- ques Tatit, mas que, ao final da narrativa, a torne mais próxi- ma de outro filme, o incômo- do Feios, Sujos e Malvados, de Ettore Scola Afinal, o tal tio, bacanão e dono de inexplicá- ‘Anos de Chumbo’ revela o patético da condição humana torna toda a situação vivida durante uma viagem de avião em algo risível. Já em Os Primos de Cam- pos, o leitor se depara commi- lícias e uma polícia que peca pela violência, contribuindo Cultura vel poder, não leva a sobrinha apenas para passear - não cabe aqui revelar mais detalhes. O certo é que o comportamen- to de outros personagens re- vela-se ainda mais insuportá- vel, como o demonstrado pela mãe damenina, que é irmã do homem e cuja preocupação descortina o padrão moral da sociedade, medido em níveis cava vez mais baixo Não é possível sorrir com tal conto, ao contrário do se- guinte, O Passaporte, no qual surge novamente uma figura que se destaca, “o grande ar- tista”, autor de atos justificá- veis do ponto de vista pessoal, mas condenáveis para quem vive em sociedade. Novamen- te, Chico revela como a racha- dura no caráter tornou-se co- mum, nãouma exceção. Oque para esquentar a questão ra- cial. Mas seria injusto limitar Anos de Chumbo a um pu- nhado de narrativas amargu- radas. O contraponto está, por exemplo, no belo Para Clarice Lispector, Com Candura, em que o autor narra a história de um jovem aspirante a poeta que, certo dia, é convidado à casa de sua escritora favorita. Até aqui, ficção coincide com realidade, pois o próprio Chi- co chegou a visitar a escritora, que morreu em 1977. A atua- lidade logo se impõe, no en- tanto, quando o jovem autor se torna obcecado por Clarice, a ponto de publicar textos na internet como se fossemdela. Chico parece dizer que os so- nhos podem, sim, ser sucedi- dos de pesadelos. “A assimetria meio trági- ca do encontro e a catalisação do delírio mostram os riscos embutidos emse deixar sedu- zir por uma imagem”, observa o também escritor Alejandro Chacoff, em crítica que cons- ta no material de divulgação. “Uma pergunta que tanto o conto como o livro suscitam é o que ocorre quando um país inteiro - metade numa direção, metade em outra - se deixa levar por esse tipo de sedução.” Mesmo nos momentos mais sublimes, Chico Buar- que não deixa seu leitor se es- quecer da sociedade que o ro- deia, como já fizera na faixa Caravanas, do disco de mes- mo nome, lançado em 2017, e cuja letra dizia: “Tem que ba- ter, temquematar, engrossa a gritaria. Filha domedo, a raiva émãe da covardia”. Era a visão de como um burguês cario- ca via as “caravanas”, ou seja, os ônibus que trazem mora- dores de morros e periferias do Rio às praias da zona sul, como Copacabana e Leblon. Também nos contos de Anos de Chumbo, Chico Buarque deixa essa persona mais con- testadora revelar sua insatisfa- ção, trazendo lirismo emvigas mestras e harmonia emcanos enferrujados. “Num ambiente literário cheiode apocalipses estrondo- sos, Buarque evoca o presente sombrio com alguns desloca- mentos sutis, seguindo a má- xima dos grandes contistas: a de extrair o máximo de efeito com o mínimo de movimen- to”, completa Chacoff. (EC) Numaeroporto prestes a embarcar para aEuropa, o fa- mosoperde de vista seupas- saporte, que acaba nasmãos de um indivíduo que “mal acreditou ao ver no docu- mento o nome e as fuças do grande artista que ele mais detestava”. “De imediato de- testou a ideia de que a cele- bridade fosse tomar cham- panhe emParis, viajandono mesmo avião que ele.” Ao ler isso é impossível esquecer uma entrevista im- pagável que o próprio Chico Buarque deu na década pas- sada, nos bastidores de um DVD. “O artista geralmente acha que é muito amado”, diz ele para a câmera. “Faz o show, é aplaudido, aí ele abre a internet e ele é odiado.” Interrompe a fala numa

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